domingo, 2 de fevereiro de 2014

2 de Fevereiro: Dia de Festa no Mar




2 de Fevereiro: Dia de Festa no Mar 


Foi assim que o baiano-carioca Dorival Caymmi cantou para a Senhora Dona das Águas:
Dia dois de fevereiro (é) dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro a saudar Iemanjá
Escrevi um bilhete a ela, pedindo pra ela me ajudar
Ela então me respondeu que eu tivesse paciência de esperar
O presente que eu mandei pra ela, de cravos e rosas, vingou
Chegou, chegou, chegou afinal que o dia dela chegou(1)

Para nós de “Afrodescendestes em Amai-Vos”, o Dia Dela também chegou!
Apesar de receber homenagem em diferentes épocas do ano, nas datas dedicadas às Iabás (Orixás Femininos) e na virada do ano (no dia 31 de dezembro), em praticamente todas as cidades costeiras do Brasil, independentemente da fé religiosa de cada participante, o dia 2 de fevereiro é louvado como o “dia de Iemanjá”.
E essa louvação, como um “presente para Iemanjá”, surgiu na Bahia. É uma idéia que teria vindo de um pescador, para reviver a festa do Rio Vermelho, devido a problemas de “sincretismo” que a igreja católica não admitia(2) e (3). Os pescadores, então, decidiram dar um presente à Mãe d´Àgua, no dia 2 de fevereiro. Mas precisavam da ajuda de alguém que conhecesse bem o culto da Mãe d’Água. Os pescadores acorreram a Júlia Bogun, Mãe-de-Santo do candomblé. Ela explicou como deveria ser um presente para Iemanjá, de acordo com o preceito africano. Pediu que fossem comprados um balaio grande, uma talha de barro, flores e fitas nas cores do Orixá: branco e azul. O presente foi levado para a Casa do Peso e depois encaminhado ao mar.
Foi assim que a partir da década de 1930 houve a ascensão do Presente da Mãe d’Água que só recebeu a denominação de Festa de Iemanjá na década de 1960 e se espraiou por todo o Brasil.

Ìyáàgbà ó dé iré sé
A kíì e Yemonja
A koko pè ilê gbè a ó yó
Odò ó fí a sà
Wè rè ó
A velha mãe chegou fazendo-nos felizes,
Nós vos cumprimentamos Iemanjá,
A primeira que chamamos para abençoar a nossa casa e nos encher de satisfação.
Usar o seu rio que escolhemos para nos banharmos, pois o rio que escolhemos é o que usas para o seu banho.(4)
Iemanjá é uma dentre as divindades do panteão africano: Iyemanjá, Yemanjá, Yemaya, Iemoja, Iemanjá ou Yemoja. Seu nome deriva da expressão na língua Iorubá "Yèyé omo ejá" ("Mãe cujos filhos são peixes").
Em sua origem africana, Iemanjá é representada como mulher adulta, sendo filha de Olóòkun - Orixá do Mar.
Yemoja é Orixá da nação Egbá, na Nigéria, onde existe um rio com o mesmo. É Orixá que representa a criação efetivada, sendo responsável pela fertilidade, fecundidade, abundância. Seu culto tem relevo nas religiões de matrizes africanas, na medida em que a iniciação dos/as adeptos/as (Bori) é dedicada a esse Orixá. É assim que ela é a Mãe de todos os Orixás.
Conforme Pierre Verger, seu culto inicialmente era feito na região entre Ifé e Ibadan, "onde existe ainda o rio Yemoja. As guerras entre nações Yorubás levaram os Egbá a emigrar na direção oeste, para Abeokutá, no início do século XIX, onde passou a ser cultuada em outro rio... O principal templo de Iemanjá está localizado em Ibará, um bairro de Abeukutá. Os fiéis desta divindade vão todos os anos buscar a água sagrada para lavar os axés, numa fonte de um dos afluentes do rio Ògùn, o rio Lakaxa. Essa água é recolhida em jarras, transportada numa procissão seguida por pessoas que carregam esculturas de madeira (ère) e um conjunto de tambores. O cortejo na volta, vai saudar as pessoas importantes do bairro, começando por Olúbàrà, o rei de Ibará."(5)

O culto à Iemanjá e aos demais Orixás foi trazido para as Américas pelos africanos escravizados, muitos dos quais eram sacerdotes nas nações do continente africano. Ao se defrontarem com a realidade das novas terras, para onde foram levados sem direito de escolha, sacerdotes e sacerdotisas tiveram que fazer adaptações aos costumes rituais para dar continuidade ao culto aos Orixás. Despojados pelo tráfico explorador de mão-de-obra, negros e negras chegavam com o único bem, com o qual agüentaram as agruras da travessia do Oceano Atlântico: suas lembranças e a fé que tinham nos Orixás, nos Ancestrais.
Quando comparamos as histórias contadas oralmente, pode-se constatar que os métodos utilizados foram praticamente os mesmos em lugares muitas vezes muito distantes entre si. O sincretismo foi um dos modos que o povo negro encontrou para se proteger e poder cultuar seus Orixás.
Os “senhores” vendo seus escravos dançarem de acordo com os seus hábitos e cantarem nas suas próprias línguas, julgavam não haver ali senão divertimentos de negros nostálgicos. Na realidade, não desconfiavam que o que eles cantavam (...) eram preces e louvações a seus orixás, a seus vodun, a seus inkissi.
Quando precisam justificar o sentido dos seus cantos, os escravos declaravam que louvavam, nas suas línguas, os santos do paraíso [da igreja católica]. Na verdade, o que eles pediam era ajuda e proteção aos seus próprios deuses.
Não se pode afirmar que já se tratava de sincretismo entre os deuses da África, por um lado, e os santos católicos, por outro, pois, no século XVIII, as características das divindades africanas eram ainda desconhecidas dos senhores e do clero português, enquanto os escravos não podiam também conhecer os detalhes da vida dos santos.
As primeiras menções às religiões africanas no Brasil são (do ano) de 160, por ocasião das pesquisas do Santo Oficio da Inquisição, quando Sebastião Barreto denunciava o costume que tinham os negros, na Bahia, de matar animais, quando de luto... Para lavar-se no sangue, dizendo que a alma, então, deixava o corpo para subir ao céu.
(...) É difícil precisar o momento exato em que esse sincretismo se estabeleceu. Parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre detalhes das estampas religiosas que poderiam lembrar certas características dos deuses africanos.(6)
Na “Santeria” cubana ou “La Regla Lucumí”, que funde crenças católicas com a religião tradicional africana, essa ligação de Orixás e Santos chega a se confundir, a ponto de os fiéis dizerem se tratar do mesmo Santo, tanto para a Santeria, como para a igreja católica. Nesse caso, Yemaya vem a ser a representação da "Virgem de la Regla" padroeira dos cubanos ou a Black Madonna, a Nossa Senhora negra homenageada em vários países.(7)
No Brasil, Iemanjá é cultuada de Norte a Sul, de formas diferentes. É importante o exemplo do Nordeste onde a religião dos Egbá, também chamada Nagô-Egbá, Xangô do Recife ou Xangô do Nordeste, tem como Orixá principal Iemanjá, por ser a mãe de Xangô, como patrono da nação.  Assim teve origem o Maracatu, onde a dança, executada com as Calungas tem caráter religioso e é obrigatória na porta das igrejas, representando um "agrado" a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito. Quando o Maracatu visita um terreiro homenageia os Orixás.
A associação que se faz de Iemanjá com Dona Janaína (branca), sereia de tantas lendas e histórias, tem origem nas mesmas referências da Bahia que deram origem às homenagens no dia 2 de fevereiro. Deve-se observar que o Orixá Iemanjá não tem qualquer referência com a volúpia das sereias das lendas européias ou mesmo com Iara (ou Mãe-D'água), figura mitológica difundida entre os indígenas. Sereias têm a origem nos mitos e lendas ocidentais cuja aparência nada tem a ver com Iemanjá cultuada em qualquer um dos países da Diáspora Africana.
Nos vários estados brasileiros, o dia 2 de fevereiro homenageia Nossa Senhora dos Navegantes (RS); Nossa Senhora da Candelária (madroeira de Indaiatuba – SP); Nossa Senhora das Candeias; Nossa Senhora da Luz; Nossa Senhora da Purificação;(8) Nossa Senhora d’Ajuda (Itaporanga – SE); Santa Maria Madalena (madroeira União dos Palmares – AL); Nossa Senhora do Bom Conselho (madroeira de Arapiraca - AL) e, possivelmente, ainda mais...
São conhecidas e concorridas as procissões e entregas de presentes a Iemanjá, em Salvador – BA, no bairro do Rio Vermelho(9); no Rio de Janeiro: o presente a Iemanjá da Casa de Cultura Estrela d´Oyá; o presente e a procissão organizada pela IRMAFRO (Irmandade de Cultura e Religiões Afro-Brasileira do Rio de Janeiro) em Sepetiba, bairro do Rio de Janeiro – RJ, desde 1994.
A procissão de Sepetiba, iniciada por Paulo de Oxossi, é, atualmente, coordenada por Pai Renato de Obaluayê. Mesmo antes de falecer, em 2003, Paulo de Oxossi havia passado a condução da IRMAFRO a Pai Renato de Obaluayê, que deu continuidade ao Presente e à Procissão em louvor a Iemanjá, com a colaboração de Babalorixás e Yalorixás (do Rio de Janeiro e de outras cidades), com reconhecido destaque para Mãe Miriam d´Oyá.
Ainda no Rio de Janeiro são conhecidas: a carreata até a Praia de Copacabana, por iniciativa do Mercadão de Madureira e a celebração do Barco de Iemanjá, por iniciativa da Congregação Espírita Umbandista do Brasil – CEUB.


Com a saudação a Iemanjá, “Odoyá”, que reafirma ser Ela a mãe, a senhora (Yá) do rio (Odo), as autoras desejam a cada um/a que vier a ler este texto, em qualquer tempo, a serenidade, a fartura e a sabedoria dos rios que não se intimidam diante de obstáculos.
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* Jurema Oliveira - também conhecida como Egbomi Jurema D'Oxum, por sua iniciação ao culto de religião de matriz africana – é da cidade de São Paulo (SP), onde nasceu, em 1948. Atuou na Umbanda por dez anos, após o que fez sua iniciação no Candomblé (1978). Na linha da ancestralidade, é filha do Babalorixá Adel de Logun Edé, neta de João da Oxum e bisneta de Vavá de Bessem. O falecimento de seu Babalorixá (1981) fez com que Jurema D´Oxum fizesse obrigação com a Iyalorixá Mãe Nitinha da Oxum, no Rio de Janeiro (1982) e OduIjê (1986). Desde 1989 os Orixás foram “morar” com Egbomi Jurema, em sua casa, em São Paulo. Como iniciada e formada, Egbomi Jurema faz todas as obrigações internamente e atende as pessoas com consultas de Jogo de Búzios. Desde 1996, vem se dedicando à pesquisa das religiões afro-brasileiras e da diáspora africana e atuando na divulgação desses conhecimentos através da Internet http://orixas.sites.uol.com.br/index1.html, http://pt.wikipedia.org/wiki/Candomble, dentre outros.
** Ana Maria Felippe – carioca; pós-graduada em Filosofia da Ciência (UFRJ), Coordenadora de Memorial Lélia Gonzalez e responsável pela seção “Afrodescendentes”, em “Cultura e Religião” de Amai-vos. Contato: anafelippe@leliagonzalez.org.br
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(1) Música “Dois de Fevereiro”, de Dorival Caymmi
(2) Antonietta de Aguiar Nunes. Historiógrafa do Arquivo Público do Estado e Professora Assistente de História da Educação na FACED/UFBa. Disponível em <http://www.faced.ufba.br/~dept02/calendario/yemanja.html> Acesso em: 31 jan. 2010.
(3) COUTO, Edilece S. (Universidade Federal da Bahia). Festejar os Santos em Salvador: Regras Eclesiásticas e Desobediências Leigas (1850-1930). Disponível em <http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_II/edilece_souza_couto.pdf> Acesso em: 31 jna. 2010.
(4) PESSOA DE BARROS, J. F. . O Banquete do Rei - Olubajé. Uma introdução à música sacra afro-brasileira. 1. ed. Rio de Janeiro: UERJ, INTERCON, 1999. 184 p.; p. 116
(5) VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Bahia: Corrupio, 2002. 295 p. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/6898406/Pierre-Verger-Os-Orixas-pdf#> Acesso em: 31 jan. 2010. Para muito mais sobre Pierre Verger: http://www.pierreverger.org /
(6) idem, ibidem.
(7) Disponível em <http://en.wikipedia.org/wiki/Black_Madonna> Acesso em: 31 jan. 2010
(8) Para saber mais, vale visitar o conteúdo disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Nossa_Senhora_da_Luz> Acesso em: 31 jan. 2010
(9) Ao contrário do sincretismo, a festa do dia 2 de fevereiro dedicado à N. Sra. das Candeias, na liturgia católica, é a única grande festa religiosa baiana que não tem origem no catolicismo e sim no candomblé.